quinta-feira, 28 de abril de 2016

Saudades da minha vó

Por Júlia Lemos



Tenho saudade daquelas tardes vazias em que o tempo se suspendia naquela imensidão de sala para tão poucas palavras... A cadeira de rodas girando no azulejo amarelado daquele chão descombinado com a pintura grotesca das paredes... Os papagaios velhos que já não conseguiam acompanhar tão bem a lucidez daquela senhora, cujas rugas tomavam mais o corpo do que o próprio rosto...

Aqueles olhos de sobrancelhas arqueadas, que resistiam a se quedar com o tempo, eram o único reflexo da verdadeira imensidão de lucidez que ela trazia por dentro. Minha avó... minha avó que não era vovozinha. Na minha tenra infância, os seus biscoitos de queijo quentinhos eram quase mais doces que a sua voz. Foi na idade adulta que fizemos nossos laços, foi naqueles dias em que eu compreendia cada vez mais nitidamente o significado da palavra solidão e me compadecia da tragédia humana dessa triste realidade que um dia há de açoitar a todos nós de algum modo. Solidão, lava que cobre tudo e nos sorri seus dentes de chumbo, que fica muito bem na poesia e muito dura na realidade. Aquelas pequeninas xícaras velhas esmaltadas sobre a bandeja da cozinha, esperando pelo café amargo que serviria as visitas, iam ficando cada vez mais sem uso. As cadeiras descombinadas e o sofá feio já não precisavam sair do lugar para encaixar os filhos e netos que outrora enchiam a casa em noites de domingo. Os papagaios velhos continuavam ali envelhecendo, cantando pouco e mal com a rouquidão que o tempo trazia, mal servindo, portanto, para substituir as visitas cada vez mais escassas. Me lembro quando aquela televisão tão odiada por ela começou a ser ligada. Primeiro, uma vez por mês. Depois, uma vez por semana. De repente, minha avó já era capaz de passar por cima de toda a sua ira contra a televisão e aceitá-la como companhia possível. O amargo ia ficando mais doce, tão doce que um dia presentificou-se de vez em uma diabetes que não queria mais partir.

Eu atravessava aquela trilha que levava da minha casa para esse recanto de minha avó e no meio da trilha, ao cruzar o portãozinho enferrujado, me sentia atravessar o portal para o universo paralelo. Como naqueles filmes de fantasia, mas muito mais intenso. Porque os filmes, afinal, nunca chegam aos pés da imensidão da vida. A fantasia era cheia de remendos em seus bordados delicados, que deixavam transparecer o quanto de delicadeza pode haver mesmo na mais dura das vidas. Aqueles paninhos bordados em linhas coloridas, com riscos de caneta azul nos fundos dos desenhos que ela fazia por conta própria e que acabava não submetendo-se por conta própria também, cobriam a geladeira, a banqueta de telefone fora de moda, a mesinha da imagem da santa, o armário da - tão odiada - TV e a penteadeira recheada de perfumes ressecados do quarto. Quando eu atravessava aquele portal, o universo particular no qual a solidão grudava-se como lava em cada pequeno canto, mais parecia um espaço da conciliação da dor com a paz. A solidão ali, tão espreita, dava tapinhas em nossas costas. Esfriava os nossos pés. Enchia o ar de silêncio. Mas a gente gostava de olhar pra ela assim: bem de frente. Ela era encarada nos olhos abertos e arqueados de minha avó. E nos meus olhos desconfiados. E a gente devolvia bofetões na cara da solidão. Porque ríamos dos causos felizes e dos tristes também. Porque o café meio velho e o pão meio duro da latinha era nosso banquete naqueles poucos momentos em que poderíamos nos alegrar pela simplicidade de nos termos ali, uma à outra, para não sermos nem ternas, nem rudes, nem belas, nem feias, nem sagazes e nem bobas.


Podíamos nos alegrar em ver a amargura cortante da vida em toda a sua crueza refletida uma nos olhos da outra, porque a gente não precisava fingir felicidade e nem chorar pelas coisas tristes. Precisávamos apenas deixar o tempo se arrastar o quanto fosse preciso para fazer o seu trabalho de ir lavando... De ir lavando, lavando e lavando aquelas nossas ideias tão infestadas da poeira dos sótãos do pensamento. Ela podia insistir para que eu não risse - pois que era verdade - que o cachorrinho preto que pegaram da rua pra criar havia morrido de calor. Morrido assim, de repente, com a língua pra fora, só por sentir muito calor. Morre-se de tudo nessa vida, por que não de calor, afinal?  Ela podia me explicar que não havia nem mesmo contradição em amar as galinhas do quintal mais do que todos os animais fofinhos juntos e, de vez em quando, fazer um cozido de frango caipira. Ela podia me mostrar a sua coleção de chifres de besouro como muito mais preciosa do que aquela sua caixinha de joias que ela nunca iria usar. E eu podia entender. E a gente podia ir assim, aos pouquinhos e do nosso jeitinho, fazendo as tardes decifrarem as contradições da vida.  Por isso, vira e mexe eu tenho saudade. Saudade do lado doce dessa rudeza nua da vida que se revelava tão possivelmente inteira a cada travessia daquele enferrujado portal.