quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Hoje se foi minha avó

Por Júlia Lemos

Hoje se foi minha avó. Não, não era a vovozinha típica dos filmes e desenhos. Ela era mais forte do que frágil. Minha vó sabia como ninguém lidar com as coisas duras da vida. Os longos dias no silêncio da sua casa, minuto após minuto, hora após hora, apenas com o som do relógio e dos passarinhos... Ela enfrentou com hombridade a guerra do silêncio dos seus 93 anos de vida. Guerra pela qual passa os idosos apegados às suas coisas e rotinas com altivez, mesmo que filhos e netos se façam presentes.

Minha avó criara 11 filhos lavando fralda de pano no tanque e cantando alto “para esquecer os longos dias em que ainda iria esperar para chegar seu homem de suas viagens de caminhão", que fazia na época. De vez em quando, também resolvia tocar sua gaita. E aprendeu a tocar brilhantemente. E eram 11 filhos e 11 mil choros e brigas, brigas das quais ela dizia não tomar partido de nenhum dos lados, “pois não era esse o dever de uma mãe”.

Ela sempre me surpreendia com presentinhos no meio da semana: bolo de laranja, goiabada, calendário de pano com desenho de corujinha, guardanapos bordados especialmente para mim com florzinhas coloridas feitas pelas suas próprias mãos enrugadas e certeiras. E ela discordava de mim dizendo que ela “não era tão boazinha quanto eu pensava. Na verdade, minha filha ninguém é assim, só bondade, isso é tudo uma ilusão”. Minha avó me ensinou com toda a sua pessoa muito do que eu sei da complexidade do ser humano. E a como ter honra diante da morte. Não só da morte física, mas das pequenas mortes ainda em vida. Lembro como se fosse hoje da gente numa fila de Banco para fazer sua anual prova de vida do idoso dizendo “é engraçado... chega uma idade que todo mundo espera tanto que você morra que é preciso ficar provando que está vivo e muito vivo”e fazia então questão de dizer de memória, para o funcionário do caixa que a atendia, todos os números dos seus dados de identidade, telefone, CEP, etc. Lembro-me também de quando me ligava dizendo que estava com saudades de mim e que “essa velha era custosa porque não queria morrer tão cedo”.

Minha avó lutou com todas as suas forças por cada segundo de sua vida. Resistiu a uma entubação e a uma amputação do pé  aos 93 anos mesmo depois de quase 15 dias solitária numa UTI na qual só podia receber 2 entes queridos durante meia hora por dia. E tudo isso num esforço surreal para manter a lucidez que tanto prezava, mas que agora só vinha em poucos momentos em meio a uma série de devaneios sobre passarinhos cantando e sobre teias de aranha que eram preciso “ser tiradas dos cantos do teto daquela casa velha”. A casa velha era o hospital. E quando ela se dava conta de onde estava, não podia se conformar com os tubos, fios e laços amarrando as suas mãos. “Espia só, como é que eu estou...”. E eu me lembrei de outros tempos de quando ela se curava de alguma enfermidade e me contava depois “só eu sei o que eu passei, minha filha. Ninguém sabe não, só eu  que sei”. É, vó...  Eu sempre soube que só você que sabia. Em Cem Anos de Solidão  Gabriel Garcia Marques já me ensinara essa lição: nossa dor é completamente solitária, mesmo que tantos saibam e participem dela. Nesse livro também tinha uma velhinha matriarca que nem a senhora, que foi ficando cega aos poucos e que ninguém percebeu quando ela chegara a ficar cega completamente, porque ela optara por viver aquela dor como de fato sempre é verdadeiramente: uma completa solidão. A cegueira que a senhora sofria cada vez maior, dia após dia, era uma dor que eu sabia que não podia aplacar. Bem como seu desespero para manter a lucidez. Bem como a dor de seus pés, que iam morrendo aos poucos e que lhe deixavam completamente desesperada por saber que neles poderia estar tudo o mais que lhe fizesse piorar. “Pode cortar do tanto que for preciso, é pra cortar pra eu viver” você disse, corajosa. E essa Vida bem pôde saber a cada momento, vó, da imensidão da sua garra e amor por ela. Guerreira das lutas dos tempos antigos, quando a mulher tinha muitíssimo pouco espaço nesse mundo, e também dos tempos do silêncio da vida idosa, quando as maiores batalhas não são apenas biológicas, mas de atribuição de sentido ao vazio quase que segundo após segundo, você lutou com honra.


E eu aprendi muito com você. Aprendi todos os dias ao atravessar aquele portal no caminho para sua casa que me transportava para a outra dimensão. Aprendi que cada detalhe é que faz o grande sentido. Tinha o café, o bordado, o biju, o padre cantor e o gatinho. Tinha os cachorrinhos que a senhora sempre arrumava não sei onde. E que preferia deixar de lhes batizar “porque todo cachorro que ganha nome acaba falecendo e nos deixando tristes”.  Tinha o cachorrinho que morreu mesmo sem lhe  dar um nome simplesmente “porque estava fazendo muito calor naqueles dias e ele colocou a língua pra fora pra morrer”. E tinha as galinhas, porque, puxa, nem era mesmo dos cachorrinhos que você gostava. Porque “bicho que se gosta mesmo, minha filha, é galinha. Das galinhas sim, eu gosto muito”. É vó... As galinhas deram muitos ovos dias atrás. E o portal que eu atravessava pra sua casa, e que com seus múltiplos sentidos simples tanto me ajudaram a sair de tanto absurdismo da vida, ainda será atravessado muitas vezes com o meu coração.